SEI QUE FUI. NÃO ME LEMBRO DE NADA.
Uma porta fechada.
Algures em 1995, três rapazes contactaram o Grupo de Trabalho Homossexual do Partido Socialista Revolucionário (GTH-PSR). Tinham uma proposta - desafiar o grupo para com eles organizar uma festa de temática gay e lésbica na recém-inaugurada discoteca CLIMACZ, no Jardim Constantino, em Lisboa. José Carlos Tavares, na altura, o dirigente do GTH-PSR, reuniu-se com o Jonas, o namorado e o Paulo. Jonas Rio, vitrinista e artista plástico, era responsável pela imagem do CLIMACZ que o atelier do arquiteto Tomás Taveira ajudara a construir no antigo Up and Down, um bar de alterne que até então funcionava naquele espaço. O dono, Vítor Trindade, conhecia o João Daniel de outra discoteca que dirigia na Costa da Caparica, a Visage, onde o João Daniel era DJ e desafiou-o para abrirem uma nova discoteca no nº 116-B da Rua Passos Manuel.
Jonas conhecia as festas que o GTH organizava na sede do PSR, no nº 268 da Rua da Palma. Essas festas aconteciam todas as
sextas-feiras e uma vez por mês, eram da responsabilidade do GTH. Cada pessoa levava bebidas e coisas para comer,
projetavam-se filmes, organizavam-se tertúlias, pequenos espetáculos entre discussões acesas. “Não há luta sem festa!”,
diz-me o Zé Carlos. Também podia ser esse o título deste texto.
Não havia nada e tal como na criação do CHOR (Coletivo de
Homossexuais Revolucionários), em 1980, como nos contou o João Grosso há uns tempos, a luta era feita pelo simples direito a
existir. Estas festas na sede na Rua da Palma, ou as que se realizaram na Comuna, onde foi lançado o manifesto do
GTH - A Ousadia de Quem Sabe o que Quer - não fizeram mais (como se isso
fosse pouco) do que criar a existência de espaços onde se pudesse ser. Não há espaço, criamos esse espaço.
Passados 8 meses, no dia 11 de novembro de 1994, abria o CLIMACZ, depois de todos os detalhes terem sido desenhados e pensados ao ínfimo pormenor, desde o sistema de som ao desenho dos puxadores. Entrava-se por uma porta e descia-se à cave. As cores iam mudando e ditando o mood. Nada foi deixado ao acaso. As enormes colunas iam revelando, com as mudanças de luz, espermatozoides que subiam até aos capitéis. Nas casas de banho, pequenas colunas iam dizendo nomes, interpelando quem passava.
A Joana Relvas e o Xunguinha (não será Chumbinho?), que era também relações públicas do Kremlin, eram os porteiros, acompanhados apenas por dois seguranças que com um detetor de metais, novidade à época, garantiam que o público entrava num safe space. Não existiam as cenas de pancadaria habituais. Quem saía à noite, nessa altura, sabe bem do que estamos a falar.
O CLIMACZ funcionava entre as seis horas da manhã e o meio-dia. Era mais fácil arranjar licença de pastelaria com música, do que propriamente uma licença para abrir um clube de dança, mas não foi este o principal motivo para o funcionamento neste horário. O house e o acid house competiam com o rock enquanto géneros de música de eleição das discotecas dos anos 90. João Daniel conhecia praticamente todos os DJs do país. Todos compravam as novidades que ele vendia na sua loja de discos em Campo de Ourique, A Question of Time Records, ali na Rua do Patrocínio 28-B. João não queria competição. Queria abrir um espaço para onde as pessoas fossem depois dos outros lugares fecharem. Queria igualmente que fosse um espaço para onde quem estava a trabalhar à noite pudesse ir depois do trabalho.
Estávamos na época das noites do Kremlin, do Alcântara-Mar, do Plateau, de quando a Avenida 24 de Julho e ruas adjacentes se enchiam de gente. O Manel Reis ensaiava o Lux num armazém da antiga Fábrica da Tabaqueira, em Marvila, numa festa organizada a propósito do 10º aniversário do Frágil, em 1992. Precisamente naquela zona oriental de Lisboa, entre o futuro Parque das Nações e Santa Apolónia onde, em 1998, o Lux viria a inaugurar. Pelo país fora, eram anunciadas raves e organizavam-se excursões ao Pacha de Ofir no Norte, à Kadoc no Algarve, à Green Hill na Foz do Arelho, à Horta da Fonte no Cartaxo...
Descobri a imagem da porta do CLIMACZ a acompanhar um texto do Gabriel de Oliveira Feitor, Uma Pequena História da Música Eletrónica de Dança em Portugal, publicado no site Comunidade Cultura e Arte. Se este texto for publicado online, colocamos aqui um link para o texto (em duas partes: Parte 1 / Parte 2) se for publicado em papel, podemos incluir um excerto para nos ajudar a pensar a razão que nos trouxe aqui:
Por que terá sido o primeiro Gay Pride português celebrado na discoteca CLIMACZ, quando já existiam outros espaços mais direcionados ao público LGBTQIA+ e qual a importância da música eletrónica de dança na comunidade LGBTQIA+, tanto em 1995 como atualmente, em 2024?
Rua da Atalaia, 125
A nossa história começou no Bairro Alto. Acontece toda na Rua da Atalaia. Eu conheci o Nuno à porta das Primas quando fui dizer olá a uma amiga. Fomos, mais tarde, trabalhar para o Capela, na Rua da Atalaia, e depois, em 1998, o Nuno foi para o Lux e eu para o Café Suave. Ainda andávamos na faculdade. Eu nas Belas-Artes, o Nuno na Nova. Alugámos a nossa primeira casa no nº 125 da Rua da Atalaia, por cima (na verdade, no prédio ao lado) do Arroz-Doce, onde se bebiam Pontapés na Cona. Íamos ao Frágil e, quando não tínhamos dinheiro, ficávamos na janela a ver quem conseguia ou não entrar. Já não era a Margarida Martins, nem o Frágil de 82, mas continuávamos a ir. A porteira era a Cláudia Spencer, sim, continuava a ser uma mulher, e íamos dançar o house e o acid house que a Yen Sung, o Vargas ou o Murka passavam.
Em 1982, quando o Manel Reis, juntamente com Carlos Fonseca, transformou uma antiga panificadora, no nº 126 da Rua da Atalaia, num bar que para sempre mudaria a história de Lisboa, nós ainda estávamos longe, no espaço e no tempo. A noite no Bairro Alto era um lugar escuro, onde a prostituição convivia com uma boémia de jornalistas e alunos de Belas-Artes que frequentavam as tabernas típicas. O Trumps tinha aberto anos antes, em novembro de 1980, mas não era o primeiro na zona do Príncipe Real. Em 1975, no contexto proporcionado pelo 25 de Abril, já tinham aberto o Finalmente Club, no nº38 da Rua da Palmeira, e o Scarllaty Club, de Carlos Ferreira aka Guida Scarlatty na Rua de São Marçal, num circuito de espaços noturnos caraterizados pelos shows de travesti e frequentados pela comunidade LGBT e aliados. Quando começámos a sair à noite, quando começámos a namorar, já existiam outros espaços, mas talvez o nosso fascínio pelo que se foi criando em torno do Frágil, e pela comunidade artística que por ali se reunia, acabasse por determinar que seria ali que as nossas memórias iriam construir-se. O tipo e a qualidade da música que lugares como o Frágil nos permitiam ouvir e a forma como conviviam pessoas dos mais diversos quadrantes (uma elite privilegiada, sabemos hoje, mas anyway...) marcaram-nos no início dos anos 1990.
“O Frágil era um espaço de liberdade. Até aí não havia um sítio para toda a gente. E isso era uma grande novidade. Lisboa era muito atrasada.” (Miguel Esteves Cardoso) “O Frágil foi a invenção da noite, quando sair era mal visto e marginal, o Manuel Reis alterou as regras. Fez uma noite de celebração, de festa, onírica, hedonista e livre. Foi o lugar do cosmopolitismo possível numa cidade parola, que gostava de imaginar que ali se passavam coisas diferentes.” (Cabrita Reis)
Foi a nossa noite possível, e foi a que encontrámos. Há uns tempos, ao ler o livro História da Noite Gay de Lisboa comentávamos, “Isto aconteceu na nossa altura, mas não estávamos lá.” Foi uma história, existem outras. Não fomos à festa do CLIMACZ, por acaso. Mas estamos aqui, agora.
Não Há Luta Sem Festa
“Vocês sabem porque é que estão aqui?”, “Sabem o que é o 28 de Junho?” Sabem o que é Stonewall?”, perguntava ao público o apresentador de serviço, Francisco Borges, membro da Abraço. A Maria José Campos dá uma dica, “É o rapaz de rabo de cavalo que está sentado ao lado da Margarida Martins no programa da Manuela Moura Guedes sobre SIDA, o Raios e Coriscos. Morreu há uns anos. A última vez que o vi, estava a trabalhar no Estoril Open, fazia locução/apresentação”.
As perguntas eram dirigidas ao público que na noite de 1 de julho de 1995 encheu a cave que era o CLIMACZ. As paredes estavam forradas com faixas com as mesmas perguntas. Essas eram as palavras de ordem - Ama Quem Quiseres - como o cartaz que o Zé Carlos levara anos antes ao desfile do 1º de Maio, em 1992 (confirmar), e muitas fotografias, de gays e lésbicas famosas. “E em Portugal, quando acontecerá?” em letras vermelhas, sobre um painel com recortes de notícias sobre o orgulho gay noutros países, conseguimos ver no fundo de uma das fotografias tiradas por Gonçalo Rosa da Silva que acompanhava o artigo publicado na revista Visão do dia 6 de julho de 1995.
A festa estava agendada para as 23h, foram espalhados cartazes por Lisboa, na rua e nos bares da zona do Príncipe Real. “O CLIMACZ ficou responsável pelos cartazes, mas se reparares bem”, diz-nos o Zé Carlos, “não aparece GTH-PSR em lado nenhum e fomos nós que ajudámos a organizar tudo. Aparece apenas o apoio da Abraço. Então lá andámos nós a colar os cartazes, eu, a Margarida Martins, e mais um grupo de pessoas, e a acrescentar uma tira de papel a dizer GTH-PSR. Não íamos deitar os cartazes todos para o lixo”.
Há uma fotografia, da Luísa Corvo, que aparece também num dos painéis da exposição que o António Fernando Cascais, o Sérgio Vitorino, o Carlos Silva e outras pessoas da ILGA e do Clube Safo organizaram, Olhares (d)a Homossexualidade, em 2000-2002, onde se vê uma faixa que foi colocada na fachada da Academia da Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica. Era uma questão de dar visibilidade àquele dia. E a festa era no CLIMACZ.
Numa das salas estavam duas televisões, com filmes, Maurice e O Banquete de Casamento. “Não estava também a Lavandaria (A Minha Bela Lavandaria)? Achava que era esse também!”, questiona-se Zé Carlos. Podiam ter sido os três, ou mais. Só alguns anos mais tarde surgiria o QueerLisboa, o antigo Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Numa das primeiras sessões, em 1997, no Padrão dos Descobrimentos, quando as luzes se acendiam, o público retraia-se, não se queria que se soubesse quem estava na audiência. É por isso que não há fotografias, era uma altura diferente, não é como agora, que toda a gente tem o telefone pronto a disparar, mas também porque as pessoas não queriam ser reconhecidas. “Ainda assim, a noite correu bastante bem! Ficámos admirados por algumas presenças, muitas pessoas que conhecíamos da vida quotidiana com um ar muito desempoeirado e alegre. A alegria estava estampada nos rostos.”
“Esses três rapazes do CLIMACZ ficaram de fazer os flyers que ficaríamos de colar nas ruas e afixar em bares, todas as outras tarefas de organização ficaram a cargo do GTH, como convidar pessoas para apresentar o espetáculo de travesti, que foi feito por duas pessoas do grupo, a apresentação de filmes que também foi feita por outra pessoa do grupo. Convidámos o Al Berto para dizer a sua poesia. Fizemos uma exposição com o nosso material e também foram expostas imagens de artistas, escritores e outras pessoas que na altura se assumiam publicamente, pessoas estas, maioritariamente estrangeiras.”
“Quem eram essas pessoas que fizeram o espetáculo?”
“O Fernando e o Diogo, que morreu recentemente.”
“Será que consigo falar com o Fernando?”
“Sim, sou eu e o Quim.”, responde-nos Fernando Rodrigues, depois de lhe ter enviado uma imagem do artigo da Visão. “Fazíamos todos parte do GTH. Era preciso alguém para fazer os números, e nós lá fomos. Eu tinha visto um espetáculo no Teatro da Trindade, do Ennio Marchetto, onde ele muda de figuras muito rápido, com uns fatos feitos em papel, e decidi utilizar a mesma ideia nos nossos fatos. Eu era a Maria Farinheira, e o Quim (Joaquim Gomes) era a Sandra Morcela. A Morcela e a Farinheira, estavam dados os nomes. Eu tinha uma peruca e um fato de papel inspirado na Madalena Iglésias. Tinha um microfone e tudo! Isso até se vê na fotografia que apareceu no Público. A peruca era o desenho de uns cabelos louros, feitos com uma cartolina amarela e um fato de papel cor-de-rosa que, quando eu me virava de costas, revelava um triângulo. Um triângulo rosa. Na altura ninguém sabia muito bem o que aquilo significava e eu achei importante fazer a referência. Nem sabiam o que era o Stonewall... O Quim levava um fato azul, uma saia preta enorme com um corpete de onde saiam flores azuis de papel, e uma cabeleira vermelha, de onde pendiam uns brincos, também em papel. Eu sempre gostei de musicais e o Joaquim de ópera. O Joaquim cantou uma música da Callas. Joaquim, estou aqui com o João Pedro”, liga-lhe o Fernando enquanto tomamos café numa esplanada na Alameda.
“Ele diz que foi a primeira área do Barbeiro de Sevilha, Una voce
poco fa” traduzo eu depois de chegar a casa e tentar desvendar o gatafunho que escrevi. “Eu tinha um
disco do Godspell, na versão que tinha sido apresentada no Teatro Villaret com a Rita Ribeiro, o
Joel Branco, etc., e achei que a música da Verónica, Reflete Bem, refletia bem o momento.
Era apropriada. (Música da Verónica com o Quarteto 1111)
Fizemos tudo em minha casa, que é perto do sítio onde era o CLIMACZ.”
A primeira vez que falei com o Fernando Rodrigues foi pelo telefone, depois de ter falado com o Zé Carlos Tavares. O Zé Carlos avisou que eu ia ligar. Depois de lhe ter explicado a minha ideia, o Fernando começou a contar-me aquilo que se lembrava e eu fui tirando notas. Mas continuava com dúvidas, por isso, quando voltei a falar com ele, achei mais fácil combinar tomar um café. Aproveitávamos e conhecíamo-nos pessoalmente. O Fernando chegou com o Manel. “Eles eram os três muito engraçados!” (não tenho a certeza se foi exatamente assim que o Manel disse, mas era esta a ideia). “Faziam sempre estas coisas juntos!” O Fernando, o Quim e o Diogo Sotero. Estava explicada a confusão. Tanto o Sérgio Vitorino como o Zé Carlos tinham-me dito que a Sandra Morcela era o Diogo.
“O Diogo é quem aparece na capa da Visão. Mas não é esta. É um outro número. O Diogo não participou no espetáculo da festa no CLIMACZ, mas estava lá. Estava sempre. A Lurdes e o namorado também foram.”
“O Quim diz que tens um saco com coisas dele onde está também um conjunto de fotografias que a Lurdes tirou nessa noite.”
“Costumávamos reunir-nos todos na sede do GTH na Rua da Palma. Fazíamos festas, e muitas dessas festas incluíam estes números de playback que acabámos por fazer também na festa do CLIMACZ. Quando se falou da festa, a ideia foi um bocado essa. Montar um espetáculo e para isso reunimos uma série de pessoas de dentro e fora do grupo (GTH-PSR). Eu nem conhecia as outras pessoas, nem me lembro bem se vi os números que fizeram, estávamos no nosso camarim e saímos para fazer a nossa atuação. Acabámos por dar também entrevistas, falar sobre o Stonewall e sobre aquilo que estava por detrás da festa.”
“E o Manel? Não se aventurava nos espetáculos?”
“Não, nada disso. Mas eu andei com eles a distribuir os flyers. Até me lembro da Dina que não nos deixou colar o cartaz, nem deixar os flyers no Memorial. Era contra! Por outro lado, havia sítios que nem eram bares gay, que sim, que até nos pediam mais flyers.”
“Os cartazes que estavam no CLIMACZ também fomos nós a fazer. Era material que tínhamos na nossa sede da Rua da Palma e que usávamos nas nossas ações. Também fazíamos os murais.” - Sim, disso eu lembro-me bem! “As fotografias eram do Carlos Ri (Carlos Silva).”
Fernando, Manel, Quim, Carlos, Lurdes, Gabriela da Silva, Francesca Rayner, William Aguiar, Diogo Sotero... Deste último, que descrevem com carinho, dizem que revitalizou um lar de idosos numa aldeia perto das Mina de São Domingos, que faleceu há pouco tempo, que deixa saudades. Não consigo deixar de pensar na Janu que conheci na pista de uma Conga, no Marum, na Mariana e no Jules que transformaram o 49 da ZDB num Rabbit Hole para uma festa do QueerLisboa e que dali passaram para outros lugares de que já nem me lembro do nome. Nas Minas no Titanic, nunca cheguei a ir ao Fontória, e depois o Planeta Manas, onde ainda não fui. Das Minas perto do aeroporto. Da Mina no Barreiro. Das Bombshells e outras tantas, nas Arvis que o Viegas organiza e insiste em convidar-nos.
Nunca existem espaços seguros, é preciso recriar constantemente esses espaços. Também nós fomos à procura deles. À porta das Primas na Rua da Atalaia, onde depois acabámos por morar. O Capela, onde trabalhámos e onde conhecemos o Fernando (já seria Dexter na altura?), o Captain Kirk (devíamos fazer um projeto sobre o Captain Kirk) com os filmes à tarde e a Lígia a dar-nos drum&bass pela noite fora, e depois o breakbeat e as festas Jungle Bells, do Dinis, no Meia Cave, no Porto, e o Frágil, sempre o Frágil. A entrevista de emprego na Loja da Atalaia onde o Manel me disse, “Vai lá ser artista” ou qualquer coisa do género, e não me contratou para trabalhar no Lux. O Nuno sim, passou no teste! Fui à inauguração do Lux com a Pérez. Como quero eu que as pessoas me contem o que aconteceu na festa do CLIMACZ, em 1995, se eu não me lembro de como foi a inauguração do Lux em 1998?
Sei que fui, mas não me lembro de nada. Há uma fotografia desse dia, da Luísa Ferreira. Como escrever sobre a Festa? Não há Luta sem Festa, e não conseguimos parar de lutar. Queria falar do Manel Reis aqui neste texto. A ver se consigo.
Rua Passos Manuel, nº116-B
“Saíram artigos na imprensa, também passou na televisão. Não me lembro em que canal. Eu próprio fiz porta durante parte da noite. Lembro-me do Al Berto, que me tocou bastante com a leitura dos seus poemas”, diz-nos o Sérgio Vitorino, que ficou com a direção do GTH-PSR, já depois da saída do Zé Carlos em 1995. “Pois, essa fotografia não pode ser nesse dia, mas as roupas, o espírito é o da altura. Envio-te também este artigo do Público, mas tem pouca qualidade.”
Se saiu no Público, deve ter saído em mais imprensa, pensei. Isto está tudo na Hemeroteca, e lá fui eu. Nas idas à Hemeroteca, consegui encontrar referências à festa no CLIMACZ - na capa do Expresso, 1 de julho 1995; no Semanário, 1 de julho 1995, p.20; Diário de Notícias, 2 de julho 1995, p.21; no Público, 3 de julho 1995, p.20; num artigo de capa da Visão nº 120, 6 de julho 1995, capa e pp.62-65. Foram também consultados, ainda que não tenha conseguido encontrar nenhuma referência, o Correio da Manhã, Jornal de Letras, A Capital, Tal & Qual, O Independente, Jornal de Notícias e Blitz das semanas anteriores e posteriores ao dia 1 de julho de 1995. Ficou a faltar a consulta da Lilás e d’O Crime, pelo menos, da lista de publicações da época.
Do artigo do Público conseguimos a maior quantidade de informação. Sabemos das palavras de ordem, sabemos da felicidade do Zé Carlos no final da noite, confiante que se tratava de um primeiro passo, e era verdade. Dois anos depois, já com a ILGA fundada, iria realizar-se o primeiro arraial LGBTQIA+ (na altura não se dizia assim) no jardim do Príncipe Real, em 1997, e nesse, sim, nesse estávamos presentes, com a Ana Pérez, na barraquinha das Primas.
“Não foi um coming out, porque a sociedade portuguesa ainda não está preparada para tal coisa, mas foi um primeiro passo na direção certa, explicou Zé Carlos Tavares, do GTH-PSR, que integrou a comissão organizadora da festa”, lê-se no artigo de J.A. no jornal Público de dia 3 de julho de 1995, segunda-feira depois da festa.
Não consigo parar de pensar no Alexandre Melo, autor da frase memorável para todo este projeto - “Sei que fui, mas não me lembro de nada! O José Ribeiro da Fonte diz que ter ido à festa foi o seu coming out. Como se isso fosse possível! Toda a gente sabia que éramos gays!”
“Em Portugal, não se prevê que num futuro próximo os homossexuais saiam para as ruas, proclamando, à luz do dia, o “orgulho gay”. Muitas das pessoas que estiveram no CLIMACZ não irão marchar pela Avenida da Liberdade numa tarde de domingo, por causa da família ou do emprego. O poeta Al Berto, que leu alguns dos seus poemas durante a festa, falava da “falta de visibilidade dos homossexuais portugueses” (fico deliciado a transcrever isto), continua o artigo, “E se a festa no CLIMACZ não pode ser considerada como um coming out, um sair para a rua da comunidade gay e lésbica nacional (e a dificuldade que os repórteres fotográficos tiveram para conseguir entrar na discoteca é sintomática disso mesmo), a noite do orgulho gay foi uma iniciativa positiva, na opinião de muitos dos presentes, pelo facto de ter existido”.
A única imagem que temos do Fernando é aqui. A fotografia é do Bruno Portela. Enviei-lhe uma mensagem. Deixa ver se ainda responde. O outro, da Visão, nem me atendeu mais o telefone quando percebeu que eu era um chato que lhe andava a cravar fotografias de há 30 anos. Sabemos como era o fato, o Fernando contou, mas nada como ver as fotografias a cores, não há volta a dar. (A curiosidade de saber se alguma delas revela um pormenor que ainda não conhecemos).
“Durante cerca de uma hora, fez-se militância, com poesia de António Botto e Pedro Homem de Melo, entre outros,” (das Canções, de certeza, mas quais? e O Rapaz da Camisola Verde - incluir os poemas no final do texto e link no online) - “anedotas de bichas, ópera de Rossini, playbacks de Maria Callas e Um año de amor (da banda sonora do filme Saltos Altos, de Almodóvar) e com o orgulho de ser gay”, continua o artigo. Já sabemos que está a falar do Quim, da Sandra Morcela, pelo menos no que diz respeito à Callas. No cartaz, aparece o nome de Alexandre Abrantes, na ópera, mas não consegui descobrir quem é. Pode ser que o Zé Carlos, entretanto, consiga lembrar-se.
“Eu acho que o Alexandre Abrantes era um ator da Comuna, amigo do João Mota e do Carlos Paulo. Vivia ali na Amadora, acho que era ele. Cantava muito bem, não foi playback, ele cantou mesmo.”
“E o Paulo Renato, lembras-te? Também me falta descobrir esse.”
“O Paulo Renato fez um pequeno desfile. Assim umas bichisses! O Jonas é esse que aparece na fotografia de grupo do artigo da Visão. Também deve ter feito parte do desfile, as roupas eram assim, as pessoas que aparecem com o Quim deviam ser quem fez parte dessa produção de moda.” Faz sentido, pensei eu, há qualquer coisa de Manobras de Maio que associo a essa altura.
“Não te esqueças de falar dos preservativos.” Insiste o Zé Carlos quando tomamos finalmente café na Charneca da Caparica. “Fizemos distribuição de preservativos com a ajuda da Abraço. Era importante passar a ideia de que a comunidade deve manter-se saudável.” Não consigo deixar de olhar para o Zé Carlos de hoje e lembrar-me do Zé Carlos vestido de preservativo, no Rossio, em 1992, no Dia Mundial da Luta Contra a SIDA. (arquivo RTP). “As faixas era o Fernando Rodrigues quem pintava.” O Fernando aka Maria Farinheira.
A Jenny Larrue disse-me logo “O único nome que me diz alguma coisa é o da Nina. O resto não sei quem é.” O Fernando Santos, Deborah Krystal, diz-me o mesmo. E acrescenta “Ainda trabalhei no CLIMACZ, algum tempo depois. E participei no primeiro Pride no Príncipe Real”. Disso eu sei, ou melhor, estava lá, mas não me lembro. Lá está.
A Deborah disse-me para eu falar com o Rogério d'Oliveira. Foi ele quem organizou o espetáculo do primeiro arraial, pode ser que se lembre de alguma coisa. O único nome que a Deborah se lembra é o da Nina Wagner, “mas esquece, não vais conseguir falar com ela, afastou-se destas coisas.” O Rogério não foi à festa. Ajudou no arraial e na abertura da ILGA. Agora está mais voltado para o dia, diz-me quando trocamos mensagens. Como o entendo! (que estupidez, JP).
O cartaz apresenta - Nina Wagner, Bibi Bozé, Roger e Cindy Galle - como os nomes do Show Travesti, mas tirando a Nina, de quem conseguimos descobrir umas fotografias num grupo do Facebook (Príncipe Real anos 60, 70, 80) não sabemos mais nada. O sketch cómico, da Farinheira e Morcela, check! Produção de moda: Paulo Renato, semi-check! Poesia: Al Berto.
“No final, já perto das quatro da manhã, Zé Carlos fez um balanço otimista da iniciativa, referindo que “para o ano será melhor”. As pessoas “vieram até aqui para participar com o objetivo de celebrar o 28 de Junho” e, se tudo correr bem, “esta festa foi o início de uma maior e melhor projeção pública da comunidade gay em Portugal”. É a tal visibilidade de que falava Al Berto, antes de ir ler os poemas - Os Amigos, Engate, um terceiro (que toda a gente vai perceber) dedicado a Mário Cesariny e um último dedicado às “quarentonas”. Foi muito aplaudido.